“Amantes o quê?” poderá se perguntar o leitor. Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, 2013, Reino Unido, Alemanha) é o mais recente filme do diretor Jim Jarmusch. O longa conta a história do casal Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton). Juntos há muito tempo, atualmente ele vive em Detroit e ela em Tânger, no Marrocos. Ao perceber que seu parceiro está deprimido, ela viaja até os Estados Unidos para fazer-lhe companhia. A paz dos apaixonados será interrompida pela chegada da inconsequente irmã mais nova de Eve. A visita desencadeia uma série acontecimentos que vão colocar Adam e Eve em contato com questões interiores que há muito tempo eles lutam para controlar.
Estou ciente da especificidade deste texto e de como isso pode reduzir o possível número de leitores. Conto com aqueles que gostaram do filme e buscam informações sobre os inúmeros subtextos deixados no ar pelo diretor e roteirista Jim Jarmusch. Talvez também os fãs de vampiros (os de verdade, não os de Crepúsculo [Twilight, 2008, EUA]) possam encontrar aqui algumas informações interessantes. Ah, eu não tinha mencionado, embora a palavra vampiro não seja mencionada nenhuma vez no longa, Adam e Eve se alimentam de sangue, dormem durante o dia, estão acordados à noite e estão vivos há muitos séculos.
1 – O Gótico
A animação característica dos góticos
Não é surpreendente que um filme que tem vampiros como protagonistas flerte com o gótico, afinal, os sugadores de sangue são as figuras que melhor encarnam esse espírito. O escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft, diz que no gótico “há que estar presente uma certa atmosfera de terror sufocante e inexplicável ante forças externas incontroláveis; e tem que haver uma alusão expressa à solenidade e seriedade adequada ao tema”. Três caracterísitcas-chave estão sempre presentes. Primeiro, a culpa técnica: alguém, em algum momento, quebrou uma regra “natural” e com isso desencadeou toda sorte de horror. A imortalidade dos vampiros é um exemplo. Segundo, a ameaça sobrenatural: a entidade encarregada de punir tem poderes incontroláveis e razões desconhecidas. Quando com fome, os vampiros sucumbem a um frenesi animalesco e monstruoso do qual eles mesmos têm medo. Por fim, o sofrimento eterno: a dor de se alimentar da morte dos outros atravessa os tempos, afinal, os vampiros não morrem. Essas características são fundamentais para entender a estética, a lógica, e principalmente, o final do filme.
2 – Detroit
Exemplo do que restou da “belle epoque” de Detroit
Se a decadência do ser humano tivesse uma forma, essa seria o vampiro. A criatura, em troca de vida eterna e de poder, renunciou à vida sob a luz do sol e se submete a uma existência que só se realiza parasitando a vida de outros. E se a decadência do modelo atual de sociedade (também conhecido como capitalismo) tem um lugar, esse é Detroit. A outrora capital do automóvel viveu seu auge na primeira metade do século passado. Sede das gigantes americanas fabricantes de carros, a cidade atraiu muita gente com sua grande oferta de empregos e salários altos. Entre 1900 e 1950, passou de 285 mil habitantes para quase 2 milhões. E tudo isso em um clima desenvolvimentista regado a bairros nobres com casas espaçosas, modernas avenidas e equipamentos culturais sofisticados que rivalizavam com os melhores do mundo. Entretanto, depois de duas guerras mundiais, da crise do petróleo e da concorrência de alemães e japoneses no mercado de automóveis, a cidade viveu décadas de crise econômica e demográfica. Hoje tem apenas 700 mil moradores, é a cidade mais falida de toda a história dos Estados Unidos e apresenta as mais altas taxas de criminalidade do país. Bairros inteiros estão abandonados, caindo aos pedaços entregues ao vandalismo, descaso e todo tipo de marginalidade. Definitivamente, um lugar perfeito para o vampiro gótico Adam sofrer.
3 – Tânger
Vista noturna de Tânger
Assim como as características de Detroit caem como uma luva para Adam, a história de Tânger pode ser entendida como a história de Eva. Muito mais antiga que Detroit, Tânger tem origens fenícias. Localizada na entrada africana no Mar Mediterrâneo, mas a apenas 15 quilômetros da Europa, a cidade era reconhecida como um importante centro comercial e estratégico desde os gregos no século VI A.C.. Desta época até a atualidade a região foi disputada por todas as potências ocidentais, a exemplo de bérberes, romanos, cartagineses, árabes, portugueses, espanhois, franceses, ingleses, alemães e americanos. A cada guerra pela soberania do local, a cidade ressurgia. Todo esse background multicultural fez com que Tânger adquirisse, em 1925, um estatuto internacional, sendo administrada por uma junta de diversos países. Esse status ficou vigente, com interrupções, até a segunda metade do século e resultou em uma zona livre de impostos, autónoma financeiramente e com vocação para atividades lícitas e ilícitas no plano cultural e econômico. Antes de tornar-se definitivamente marroquina, em 1960, foi destino de artistas, diplomatas, espiões e contrabandistas. É o lugar perfeito para a poliglota Eve conseguir seu suprimento de sangue contrabandeado e ter acesso ao melhor da literatura mundial. Assim como em Hiroshima Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, 1959, França, Japão), porém com menos força, os personagens se confundem com suas nacionalidades, locais de origem ou com os quais se identificam.
4 – A Música
Adam e sua relação com a música
A trilha sonora do filme é bem executada, adequada e complementa a linguagem visual. Jarmusch faz uso de seus protagonistas para rechear o filme de referências e constrói Adam para ser a música. O vampiro é um bem-sucedido neste campo e coleciona instrumentos raros. Ele, ao mesmo tempo, quer que o mundo conheça seu trabalho mas não está disposto a lidar com a fama que pode advir disso. Adam teria dado a Schubert, considerado um dos maiores compositores do século XIX, um trecho de uma de suas sinfonias. Há menções a artistas mais recentes, a exemplo da cantora de soul Denise LaSalle interpretando “Trapped By A Thing Called Love”, Charlie Feathers com “Can’t Hardly Stand It” ou as obras minimalistas de Jozef van Wissem. A banda do próprio Jarmusch, SQURL, também está presente. Entretanto, além de músicas inseridas como trilhas, há também momentos em que “artistas reais” fazem apresentações no filme. O momento mais emblemático é quando o casal de vampiros é praticamente hipnotizado pelo vocal de Yasmine Hamdan. Ela, acompanhada de instrumentos árabes tradicionais, consegue fazer uma fusão do antigo com o novo que arrebata até mesmo Adam.
5 – A Literatura
Eve em sua biblioteca
Se Adam é a música, Eve é a literatura. De partida para Detroit, ela só leva livros na bagagem. Entre as as obras escolhidas, estão a peça “Endgame” de Samuel Beckett, o romance “Dom Quixote” de Miguel de Cervantes, “Infinite Jest” de David Foster Wallace e um catálogo de Jean Michel Basquiat. Ao reservar voos de Detroit para Tânger, Eve usa o nome Daisy Buchanan, um dos personagens principais do romance “The Great Gatsby” de F. Scott Fitzgerald. Quando ainda em Tânger, ao falar com o amigo Kit Marlowe sobre a personalidade sombria de Adam, ela atribui essa característica à influência de Mary Shelley (1797-1851, autora de Frankenstein), Lorde Byron (1788-1824, poeta romântico britânico), John Keats (1795 – 1821, poeta romântico inglês) e de outros românticos franceses. Mas a maior ousadia do filme é a referência a Christopher Marlowe, sim, o mesmo Kit Marlowe que é amigo de Eve. Dramaturgo e poeta inglês nascido em 1564, ele seria, na verdade, autor dos textos de Shakespeare. Marlowe morreu em circunstâncias desconhecidas e, no filme, ele continua vivo como vampiro e atravessa os séculos sendo escritor fantasma.
6 – A Ciência
Vampiros eruditos, a gente vê por aqui
Por último, mas não menos importante: Adam e Eve são entusiastas da ciência. Ele, mais das exatas, ela, das humanidades. É Adam que sempre declama a teoria do entrelaçamento quântico de Albert Einstein (1879-1955), segundo a qual, se dois corpos estiveram ligados de maneira muito intensa, mesmo que separados, um não poderá ser descrito sem que o outro seja mencionado. Aliás, essa teoria cai como uma luva para explicar o amor de Adam e Eve. Ele também é um construtor habilidoso. Revoltando com maneira humana de produzir e distribuir energia elétrica, ele usa as descobertas de Nicola Tesla (1856 – 1943), engenheiro sérvio, para produzir domesticamente a energia que ilumina sua casa. Eve também demonstra vasto conhecimento, sabendo de cor os nomes científicos de várias espécies de animais, revelando intimidade com a biologia dos fungos e dando informações sobre astronomia. E, fazendo uma crítica aos atuais elogios humanos ao criacionismo, Darwin (1809 – 1882) também é citado como um dos cientistas cujas brilhantes ideias não foram devidamente reconhecidas.
Se você, leitor, teve paciência de chegar até aqui, em primeiro lugar, obrigado. Certamente existem outras referências que podem ter passado despercebidas ou que ficaram de fora desse post para que ele não tivesse o tamanho de uma Bíblia. Mas, se alguém sentir necessidade, comentários e adições são sempre bem-vindos. Ah, para o filme, nota 10.
